Essa é uma dessas histórias que nem eu sei se foi verdade. Ou foi verdade, mas não real. Ou real, com algumas partes de verdade. A outra seria mentira? Ou apenas delírios? Difícil dizer, e na real (essa é real mesmo), não estou a fim de pensar sobre essa questão, depois você se ocupa com isso.
O que vou lhe contar ocorreu no último verão. Pelo calor, acredito que era no verão sim, quase certeza. Perdoem se estou meio confusa, minha mente anda uma bagunça. Já nem sei mais quando estou desperta ou em fantasia. Posso estar aqui, contando-lhe essa narrativa, mas nem por isso lhe garanto que meu espírito está de fato nesse lugar. Não sei mais quando estou realmente acordada.
Morava numa cidadezinha no interior de São Paulo, meio isolada do resto do mundo. Minha casa ficava um pouco afastado do resto da cidade, numa área onde só há pequenos sítios. A maior propriedade por lá é a Fazenda Iaciara, que abriga um enorme rebanho de Nelores. Constantemente passeava pela estrada de terra batida que faz divisa com essa fazenda, cuja poeira vermelha levantava sob meus pés, deixando evidente a falta de chuva nessa época do ano. Gostava de olhar os animais do outro lado da cerca, pastando, calmamente, sem demonstrar preocupação alguma. Próximo à essa fazenda há um penhasco chamado Pico da Embaúba, por causa de uma árvore de Embaúba que está lá há anos. Era de praxe me sentar sob ela para olhar a maravilhosa vista do penhasco. Raramente alguém ia pra lá, principalmente após um acidente que ocorreu anos atrás: há aproximadamente sete anos, uma garotinha que morava na cidade, chamada Alice, caiu do penhasco. Parece que ela não batia bem da cabeça. Seus pais costumavam deixá-la dentro de casa, evitando contato com as outras pessoas, para não assustá-las.
Alice via “coisas”. Coisas além do que o resto do mundo podia ver. Era comum vê-la falando sozinha, mas jurava que tinha alguém ali com ela. E isso assustava os moradores da cidade, principalmente os coleguinhas da escola. Por causa disso, os pais decidiram que era melhor ela ficar em casa. O problema é que ela insistia que tinha sempre um coelho pelo quintal da casa, e todo dia perseguia o pequeno animal. A questão é que apenas ela o enxergava...e sempre a levava para o Pico da Embaúba, onde ele “desaparecia”. Não preciso dizer que um dia ela não voltou para casa. Encontraram seu corpo três dias depois caído do penhasco. Por causa disso, seus pais fixaram um crucifixo perto da árvore de Embaúba. Confesso que nunca tinha visto essa guria na vida, mas “a conheci” ano passado.
Isso foi numa quarta-feira. Estava um calor dos infernos, para variar. Como de costume, caminhava pelas fronteiras da Fazenda Iaciara observando os bois me observarem (?). Essa foi a primeira vez que eu tinha visto aquela vaca bizarra, me encarando com um olhar vazio. Sem dúvida me olhava, mas eu não sabia dizer se no fundo realmente olhava para mim (deu pra entender?). Fiquei um tempo encarando-a de volta. Sim, eu sei, deveria parecer uma retardada. Não deu dois minutos e algo no meio da mombaça me chamou a atenção. Uma garotinha estava agachada, concentrada em alguma coisa à sua frente. Não sei que diabos faria uma criança no meio do pasto com bichos de mais de 450kg andando por lá. Passei por entre as cercas (sim, não devia, mas fiz) e caminhei até a garotinha, pousando a mão em seu ombro.
- Está perdida?
Ela se virou assustada, quase desequilibrando-se da posição que se encontrava. No momento seguinte, já me reprendia:
- Shhhhhh! Não tá vendo que pode assustá-lo?
- Quem? Os bois?
- Não! O coelho. Ali ó!, e apontou para frente.
Fiquei uns minutos observando, mas só via mato e cigarrinhas saltitando.
- Não vejo coelho algum...
- Claro que não, ele está escondido.
- Humm sei. Olha, é perigoso ficar por aqui. As vacas estão com bezerros, podem achar que você é uma ameaça e atacá-la.
- Elas nunca me machucariam.
- Ah é? E por que não?
- Porque não.
Não tinha saco algum para discutir com crianças. A lógica delas não é tão...lógica.
- Tsc, você que sabe...mas seus pais não ficariam felizes se você se machucasse.
- Tá tudo bem.
- Tem cert...
- OLHA! ALI!
Antes que eu terminasse de falar, a pequena garota saiu em disparada pela mombaça alta. Por algum motivo, corri atrás dela. A bichinha era rápida, foi difícil acompanhar. Após uns dez minutos de “perseguição”, ela sumiu. Procurei em volta, mas tudo parecia calmo, como se nada daquilo tivesse acontecido. Caminhei mais para frente, saindo do terreno, procurando ainda pela criança. Reparei, porém, que perto de mim, entre a mombaça, estava aquela vaca esquisita. Mas não me encarava, como antes. Estava olhando para o lado esquerdo, da mesma maneira bizarra. Foi aí que me dei conta que a Fazenda fazia divisa bem próximo ao Pico da Embaúba. E era para a Embaúba que a vaca olhava. Caminhei até a árvore, e notei que alguém estava sentada sob suas raízes. Era a garotinha.
- Ah, aí está você. Como você corre, menina!
- Não se pega um coelho caminhando...
- Aham, sei. E pegou seu coelho?
- Não, ele fugiu. Sempre foge.
- Ele é seu?
- Não, mas sinto que me chama.
- Como assim?
- Não sei, só me chama.
- Você fala umas coisas esquisitas...
Enquanto conversava, notei como a garota era branquinha, o que era bem incomum, já que quase todos da cidade eram no mínimo bronzeados por causa do sol que nos torrava diariamente. Assim como eu, ela estava com uma blusa de alcinha, mas, ao contrário de mim, a mombaça não fez um único arranhão em sua pele exposta.
- Aliás, mocinha, qual o seu nome?
- Alice.
- Alice?
- Sim, como a “das Maravilhas”.
- E você persegue um coelho por causa da Alice “das Maravilhas”?
- Não. Porque ele me chama, já disse. Mas me tornarei “a das Maravilhas” quando o pegar.
- Ainda não entendo...
- Não precisa entender...hã..como se chama?
- Paloma.
- Ah, como a “das pombas”.
- É...deve ser.
- A vaca é sua?
- Que vaca?
- Aquela ali, parada no meio do pasto.
Olho para trás, e vejo aquela vaca bizarra me olhando.
- Não. É dessa fazenda aí.
- Não é não.
- Como sabe?
- Ela me disse.
- Você fala com a vaca?
- Ela que fala comigo.
- E ela não disse que não é minha?
- Ela não me fala o que não importa.
Não sei, mas aquela garotinha começou a me irritar.
Alice então, ficou em silêncio. Encarava o penhasco sem piscar. Só agora vejo que estava sentada ao lado do crucifixo. Nessa hora, um pequeno calafrio percorreu minha espinha, mas antes que eu abrisse a boca, ela começou:
- Já estive aqui antes. Mas não lembro quando.
- Você mora por aqui?
- Devo morar.
- Há quanto tempo?
- Não sei.
- Não sabe?
- Não.
- Você sabe de alguma coisa?
- Só que eu preciso do coelho.
- Posso te ajudar a pegá-lo se quiser.
- Não sei se conseguiria...
- E por que não?
- Você não corre.
E soltou uma risadinha sarcástica. Por algum motivo, não consegui ficar brava com ela, e sim, acabei rindo de volta. Nessa hora, ela sorriu, e que sorriso bonito! Se ela era a Alice que todos falavam, que maldade foi esconder esse rosto “das Maravilhas” do resto da sociedade. Ela não me parecia louca. Ou talvez porque eu esteja um pouco louca. Não sei. Só sei que ninguém da cidade acreditou quando eu comentei que vi essa pequena correndo pelo pasto, pelo contrário, me olharam assustados. Com o tempo, alguns pararam de falar comigo; outros, me olhavam torto. Acho que eu fui taxada como a nova louca da cidade.
xxx
Na quinta-feira, o dia amanheceu gelado. Agasalhei-me como pude, afinal, ia sair para minha caminhada diária. Por mais que procurasse, não sabia aonde estava minha touca amarela. “Que merda...” Havia ganhado essa touca de meu pai um mês antes dele falecer. Gostava muito dela, porém, como raramente fazia frio nessa cidade, raramente conseguia usar. Agora, quando esfriou, não a acho. Só pode ser carma...
Revirei a casa quinze vezes mas nada. Tive que colocar outra mesmo.
Saí pra caminhar antes do meio dia, mas não encontrei a menina dessa vez. Coincidentemente, a vaca bizarra também não estava ali. De alguma forma, isso me entristeceu. Teria sido uma ilusão mesmo? Sei lá, andava meio desanimada esses dias. A insônia me assombrava toda noite. Talvez dormir tão pouco esteja afetando minha cabeça.
Voltei frustrada para casa. Estava com o dia livre, sem serviço para fazer, por isso queria tanto encontrar aquela garotinha, ao menos para “passar o tempo”. Ah, nem falei: trabalhava para uma revista da cidade vizinha. Fui abençoada por arranjar um serviço que podia ser feito em casa, já que eu não gostava de ficar trancafiada num escritório. Eu escrevia umas crônicas, e podia mandar tudo para o e-mail da empresa. Era ótimo.
Como o dia estava friozinho, preparei um chocolate quente e resolvi assistir TV. Zapeei canal por canal, atrás de algo decente, mas nada me chamava tanta atenção. Devo ter feito isso por muito tempo, pois meu chocolate até acabara. Desliguei a TV, e acabei pegando um livro e uma coberta (estava frio pra burro!). Fazia tempo que não lia nada, aproveitaria aquela tarde para isso.
Enquanto lia, sentia a coberta ficar cada vez mais quentinha. Não sei se é só comigo, mas quando isso ocorre, ainda mais num dia frio, sinto o sono me envolvendo pouco a pouco. Meus olhos começaram a se fechar, e eu brigava comigo mesmo para manter-me acordada (que irônico! Passo a semana em insônia, e quando meu corpo decide dormir, me nego. Devo ter problema mesmo). Estava quase adormecendo, quando um barulho do lado de fora me desperta. Olho pela janela, e vejo a vaca bizarra me encarando do quintal. E o pior que não apenas me encarava: estava usando minha touca amarela. Sim, aquela que havia sumido.
“Mas que diabos...? Aquela vaca....e com minha touca.”
Estava para levantar do sofá, quando meu livro caiu no chão, e o barulho fez eu acordar.
“Um sonho?”
Parecia real demais para ser. Olhei para a janela, e não havia mais vaca alguma. Esfreguei meus olhos, certificando-me que estava desperta, e caminhei até o quintal. Não era possível, tinha certeza que não estava dormindo. Inspecionei o lado inteiro de fora de casa, mas nem sinal de vaca. Nem de ninguém.
“Tsc...que seja.”
Retorno para dentro, disposta a ler mais um pouco. Mas antes, precisava lavar o rosto, queria ter certeza que não dormiria de novo...se é que dormi mesmo. Para minha surpresa, ao passar pela porta do quarto, deparei com minha touca amarela em cima de minha cama. Estaria dormindo de novo? Não sei se realmente a vi, mas tenho quase certeza que sim. Aliás, tenho certeza de quase nada desde que encontrei com Alice. Creio que esteja apenas delirando. Como disse, minha cabeça anda cansada.
Resolvi não pensar muito naquilo o restante do dia. Quando a noite caiu, parte do sono havia passado. Demorei horrores para conseguir dormir. E tenho a impressão de que, nesse meio tempo da madrugada, quando tentava adormecer, ouvi claramente uma vaca mugir próximo dali.
xxx
Sonhei que caminhava pela mombaça. Era noite, e estava frio. Bem frio. Apesar disso, encontrava-me despida. Devia ser sonho mesmo. Andava sem rumo pelo pasto, que parecia bem mais alto do que de costume. O silêncio era absoluto, nem os grilos podia-se ouvir. Só queria sair dali e me vestir, estava congelando. Após um período andando no breu, deparo-me com a Embaúba. Estava seca, sem folhas, sem vida alguma. O crucifixo estava caído em suas raízes, como se alguém tivesse o arrancado da terra e jogado para o lado.
Pouco conseguia enxergar ao meu redor. Nem lua nem estrelas havia no céu. Tudo estava quieto, e aquilo começou a me assustar. O frio começou a aumentar, e a mombaça parecia se adensar cada vez mais, impedindo a passagem através dela. Viro para a direita, à fim de pegar o outro caminho para sair dali. Porém, dou nem dois passos e sinto o chão sumir sob meus pés. Desde quando cheguei tão perto do penhasco? Virei-me para tentar voltar, mas em vão. Entretanto, pude ver de relance a figura da vaca me encarando. E ela estava com minha touca.
Gritei, mas minha voz não saía. Antes de despencar ao solo, abri os olhos, acordando assustada. Estava no quarto, ofegante, as cobertas todas caídas no chão. Isso explica o frio que sentia. Respirei fundo até me recompor, bebendo um pouco da água que sempre deixo no criado-mudo ao meu lado. Fazia tempo que não sonhava, já que nem dormir dormia. Se fosse para ter sonhos assim, era melhor nem ter.
Assim que me acalmei, recolhi as cobertas do chão e me acomodei na cama novamente, extremamente sonolenta, e voltei a dormir. Enquanto meus olhos se fechavam para mergulhar no sono, tenho a impressão de ter visto Alice em meu quarto. E quase certeza de que a vaca estava ao seu lado.
Adormeci.
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Durante aquela semana, o sonho se repetia. Sempre que estava para apagar, via seu vulto perto de minha cama. Várias vezes abria os olhos para verificar, mas não encontrava nada. Poderia já fazer parte do sonho mesmo. Vai saber.
Passava os dias obcecada em encontrar a vaca ou a garotinha. Poderia até mesmo ser o bendito coelho dela, coelho que ela afirmou que eu não pegaria pois não sabia correr (o que não era mentira). As pessoas da cidade evitavam falar comigo, crentes que eu havia perdido o juízo. Só sabia falar da Alice (e da vaca). Ninguém me respondia. Só me olhavam assustados e saíam de perto. O dono da fazenda me proibiu de entrar em suas terras quando me pegou andando pelo pasto gritando pela menina. Ameaçou com sua espingarda em minha testa caso me encontrasse por ali de novo. Confesso que isso não me fez parar; só que agora, vagava pelo pasto sorrateiramente pela noite, quando o proprietário estava dormindo.
Duas semanas se passaram desde que comecei a essa busca noturna. Era quarta. Quem sabe, como naquela última, eu encontraria a menina de novo. A noite estava fria, como meu sonho, e sentia que hoje encontraria Alice.
Caminhava pelo pasto discretamente, não querendo chamar atenção nem dos bois. A lua iluminava meu caminho, ao contrário do que ocorria nos meus sonhos. Observava atentamente ao meu redor, em busca de um mínimo movimento sobre a pastagem. Já havia caminhado por uma hora, quando ouço um barulho ao meu lado. Agachei, ficando imóvel, com medo de que seja o dono da fazenda atrás de mim. Os passos se aproximavam, e meu coração começava a acelerar gradualmente. Para o meu alívio, do meio da mombaça não surge o dono da fazenda, e sim a vaca bizarra. Ela me encara, com aqueles olhos vagos de costume. Pela primeira vez, dirigi a palavra à ela.
- Estava te procurando.
Mal terminei de falar, e um pequeno animal branco passa correndo ao meu lado.
“O COELHO!”
Corro atrás deles o mais rápido que pude. Não o enxergava no meio da noite, mas ouvia claramente suas passadas pelo pasto. Como da primeira vez, ele sumiu. E como da primeira vez, vejo-me na divisa da fazenda com o Pico da Embaúba. Atravessei a cerca, na esperança de encontrar Alice sob a árvore de novo. Porém, ela não está ali. Procurei-a pela região, mas não havia sinal algum dela.
Nem do coelho.
Nem da vaca.
Estaria sonhando acordada de novo? Estou realmente aqui no Pico? Pela primeira vez, comecei a cogitar se estava ficando louca mesmo. Estava frustrada, confusa. Involuntariamente algumas lágrimas escorreram pelo meu rosto. Sentei-me próxima ao penhasco, olhando para a frente, sem realmente olhar para algo. Tudo o que mais queria era esquecer essa história toda. Largar essa paranoia e voltar à minha vida normal (se é que já tive um dia).
Como no sonho, o frio só aumentava. Reparei, então, que a lua sumiu por trás das nuvens, e só avistava uma ou duas estrelas. Sequei minhas lágrimas com as costas da mão enquanto me levantava, permanecendo em pé. Escuto um mugido atrás de mim e, ao virar, encontro a vaca bizarra parada perto da árvore, olhando para o crucifixo. Volto meu olhar para ele e, para minha surpresa, encontrava-se caído sob as raízes. Antes mesmo de pensar alguma coisa, um coelho surge correndo da direção do crucifixo diretamente para mim. Mais uma vez (ou pela primeira vez), desequilibro-me e sinto o solo desaparecer sob meus pés.
E mais uma vez (se é que já teve alguma), vejo a vaca me encarando com seus olhos vazios.
Dessa vez, não consegui acordar, e meu grito não saiu mudo. Avisto o solo se aproximar, segundos antes de chocar-me contra ele. Não lembro de ouvir mugido, e sim o estalo de meus ossos se quebrando. No lugar da voz, minha boca se preencheu com um gosto férrico de sangue fresco. Não demorou muito para minha visão começar a se turvar, e o som do ambiente ao meu redor ir desaparecendo. Talvez tenha perdido a consciência assim que caí, e tudo isso tenha sido uma fantasia. Porém, tenho certeza de que, antes de minha visão e pensamentos se apagarem por completo, vi Alice de pé ao meu lado (e a vaca bizarra parada atrás). Como naquele dia, ela me olhava, sorrindo, aquele “sorriso das Maravilhas”. Lembro que aquilo me confortou.
Ela sorria, feliz. E dessa vez, com o coelho branco em suas mãos.
Ao menos consegui pegar o maldito coelho para ela.
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