Chega um momento da vida que ficar saindo religiosamente todo fim de semana não faz mais sentido, pelo contrário, após passar a semana toda trabalhando, saindo cedo de casa e voltando só quando está escuro, a única coisa que você quer é ficar largado no sofá vendo TV enquanto se enche de porcarias gordurosas. E esse sábado estava me seduzindo para isso.
Ter um dia tranquilo era tudo o que eu precisava. Trabalhei mais horas do que devia essa semana, e sentia meu corpo clamar por descanso. Tratei de colocar a roupa mais confortável que tinha no armário, desliguei o celular, fechei as cortinas e coloquei uma pipoca para estourar. Deixei de lado as neuras da boa forma e resolvi abrir um refrigerante gelado para acompanhar-me nessa tarde infernal de verão (não é pecado uma vez por semana sair um pouco da dieta...ou é?). Podia escutar do meu apartamento o som da vizinha de baixo no máximo. Assim que o micro-ondas apitou, retirei a pipoca de dentro para colocá-la numa vasilha.Infelizmente algumas queimaram. Essa é a desgraça de micro-ondas novo: até eu pegar suas manhas, acabo passando do ponto. Seria bom se todos tivessem a mesma potência, facilitaria MUITO minha vida (e minhas pipocas não sairiam queimadas).
Retirei da vasilha as coitadas que não tinham salvação de tão chamuscadas que ficaram e fui para o sofá. O que poderia assistir? Um filme? Desenho? Noticiário talvez? Enquanto zapeava pelos canais, encontrei um que estava passando um documentário. "Você sabe o que você come?", dizia o narrador. "Estamos na fazenda do Sr.Ernesto, que há quatro gerações cultiva milho, mas há dois anos resolveu aderir ao milho transgênico". Enquanto um repórter metralhava o agricultor com perguntas, pouco escutava o que diziam. Minha mente estava distante, divagando, sentindo o cansaço dos dias anteriores. Apenas olhava para a tela enquanto levava punhados de pipoca até minha boca, em movimentos automáticos. Preguiçosamente visualizava o cenário do documentário, toneladas de milho sendo derramados e ensacados, um milharal imenso que mal era possível ver onde terminava.
Minhas pálpebras estavam pesadas, percebia que de vez em quando cerrava meus olhos, mas logo abria, tentando manter-me desperta. Poxa, tinha acabado de me acomodar no sofá! Não vi nem quinze minutos de TV. Fixei os olhos bem abertos para a tela, mesmo sem entender mais do que o documentário se tratava, apenas via milhos, laboratório e prateleiras de supermercados. Um punhado de pipoca aqui, um gole do guaraná, comia e bebia por inércia, apenas queria manter-me acordada. Apesar da vista fixada na TV, percebi que minha mente não estava focada. Devo ter cochilado.
Acordei num pulo com um estrondo vindo de fora. Nisso, acabei esbarrando na lata de refrigerante, esparramando tudo no chão da sala. "Era só o que me faltava". A vasilha de pipoca estava vazia e a TV desligada. Será que apertei o controle sem querer enquanto dormia? Levantei meio sonolenta, deixando escapar um bocejo. Que horas seriam? Não encontrava o relógio da sala, tinha certeza que ficava na parede. "Preciso limpar a meleca que fiz no chão". Caminhei até a cozinha atrás de um pano para limpar, e percebi que o lixo que eu tinha jogado as pipocas queimadas estava vazio. Não prendi muita atenção nisso. Tratei de limpar logo a sujeira para curtir o resto do sábado. Parecia estar cedo, então decidi dar uma passada até o mercado. Ao abrir a porta, o elevador já estava em meu andar. "Que sorte". O prédio estava num profundo silêncio, será que a maioria resolveu sair? Até mesmo a vizinha de baixo tinha parado com a música. Nem o porteiro estava em seu lugar, mas sua TV estava ligada. Passei de relance e vi que estavam falando de milho transgênico. "Caramba, ainda está passando aquele documentário".
Enquanto caminhava até o mercado, percebi que tinha alguma coisa no bolso do short. Coloquei minha mão dentro dele e retirei uma pipoca chamuscada. "Ué?". Como veio parar aqui? De repente, tive a impressão da pipoca ter piscado para mim. Num susto, dei um grito e joguei-a longe. Ao cair no asfalto, vi aquela "coisa" se levantar. Havia pernas e braços bem fininhos, os olhos eram grandes em comparação com o corpo (se é que poderia chamar aquilo de corpo), a boca era bem pequena, e um par de asas semelhante a de morcegos abriram em suas costas. Estaria eu vendo coisas? Esfreguei os olhos para ter certeza se estava vendo aquilo, até me belisquei para ver se era verdade. Mas aquela pequenina alada ainda estava ali, olhando para mim, e dessa vez, pairando no ar. Num movimento instintivo, corri em disparada. Sentia as pernas pesadas, mas dei o máximo de mim para ficar longe daquele protótipo de aberração. Não sei como, mas quando me dei conta, já estava no meio do estacionamento de um shopping. Avistei uma mulher perto da entrada, aparentemente apressada, e resolvi pedir socorro à ela, mesmo sabendo que poderia ser vista como louca.
- Moça, por favor, me ajuda!
- O que houve?
Engoli a noção do ridículo e falei:
- Sei que pode parecer loucura, mas tem uma pipoca atrás de mim!
- Eu sei! Elas estão por toda a parte!
- OIIII???????
Eu não sei quem estava sendo mais maluca naquela conversa, nada fazia sentido. Corri até a mureta do estacionamento e olhei para fora. Não sei como não reparei, mas realmente havia centenas de pipocas voadoras atacando a cidade. As pessoas corriam desesperadas, carros batiam, algumas casas em chamas, estava tudo um caos. O pior era que, de alguma maneira, as pipocas conseguiam matar as pessoas que elas encostavam. E o pior: elas viravam frangos-zumbis. Quando isso começou? Voltei à mulher do estacionamento, mas ela não estava mais ali.
Resolvi correr de volta ao meu apartamento, mas não lembrava aonde era. Tudo estava bagunçado. Tentava desviar das rasantes que as pipocas davam, via pessoas sendo atacadas pelos frangos-zumbis, algumas chorando vendo seus parentes sendo mortos, e outras assistindo-os se transformarem. Precisava pensar num jeito de sobreviver àquilo, mas como? Nem sabia como tinha começado. Desejei encontrar alguém que me desse essa resposta, e parece que minhas preces foram atendidas. Mais à frente, avistei um grupo de repórteres filmando aquela cena de horror. O câmera parecia assustado, a repórter estava machucada, a assistente chorava. Corri na direção deles e puxei a assistente de lado.
- Desculpa, mas o que está acontecendo??
- A cidade está sendo atacada!!!
- Eu sei disso! Mas como isso começou??
- Uns loucos criaram um milho transgênico que viram esses mutantes quando aquecidos!
- Mas..mas...por que as pessoas viram frangos? Frangos não comem milho???
- Ninguém sabe direito o que está acontecendo! Se você come esses milhos mutantes também vira um frango-zumbi!
Gente, eu acabei de comer uma vasilha inteira de pipoca! Será que eles estavam afetados??? Será que aquela pipoca chamuscada era realmente minha? Fiquei preocupada. Não queria virar uma galinha! Se o que ela disse era verdade, eu estava destinada a virar uma. O desespero bateu fundo na minha alma, comecei a tremer, e chorar, e sem saber o que fazer. Os repórteres sumiram, o caos continuava. Corri sem rumo tentando achar meu apartamento. Se for pra morrer, que seja em casa! Nessa hora, até escutava bem baixinho o maldito som da vizinha de baixo. Faria as pazes com ela nessa hora...ou não. Será que ela estava viva ainda?
Por mais que eu avançasse, parecia que não saía nunca do lugar. Estava perdida. Olhava as pessoas correndo, nem olhavam para minha cara. As pipocas voadoras tinham uma feição diabólica, pareciam gostar de assassinar as pessoas indiscriminadamente. Por um instante achei ter ouvido a voz do Sr.Ernesto. Parecia dizer que esse milho que cultivava era mais vantajoso. Que saco! Era coisa a se dizer no meio desse caos? Continuei a correr, procurando um lugar para me refugiar. Na quinta esquina que virei, dei de frente com meu prédio. Aleluia! Corri logo em direção à ele, e na emoção, parecia demorar para alcançá-lo. Subi até o apartamento de escada, não queria arriscar o elevador no meio dessa confusão. Vai que a luz acaba ou pior, o prédio explode! Estava tão aterrorizada que pensava nas piores coisas. Enquanto corria, notei que algo me seguia. Era a Pipoca! Aquela que queimou no meu micro-ondas! A maldita me perseguia, será que estava com raiva por eu ter comida suas amigas? Corri o máximo que pude. Ao chegar em meu andar, a porta já estava aberta. Fechei, mas não consegui trancá-la. Tudo parecia normal lá dentro. Atrás de mim, a Pipoca arrebentou a porta. Ela parecia maior do que da última vez. Encarava-me com rancor. Estava encurralada, não tinha para onde ir. Do corredor dos quartos, um frango-zumbi apareceu na sala. Parecia seguir ordens da Pipoca endiabrada. Ambos me encaravam, como lobos encarando a presa. Encostei na porta da varanda, apavorada, sem saber o que fazer.
- Me desculpa, por favor! Eu não sabia!
Ela não respondeu. Apenas continuou me encarando com desprezo, avançando lentamente em minha direção. Esfreguei meus olhos novamente, não era possível que aquilo fosse real. Ao fazer isso, notei que em vez de mão, estava com asas, mas não voava. A Pipoca parecia satisfeita, e percebi que estava começando a me transformar. Sentia-me estranha, mas consciente do que acontecia. Não queria acabar daquele jeito. O frango-zumbi babava, o bico estava entreaberto, de seu esôfago vinha o som da música da minha vizinha de baixo. Provavelmente deve ter devorado-a, junto com seu rádio irritante. Não queria virar aquilo, não me conformava. Sentia penas surgindo pelo meu corpo, escamas brotando de minhas pernas. Minhas unhas dos pés cresciam, e minha boca começava a se alongar.
- Não tem como fugir disso. - disse a Pipoca, que estava pairada no ar, batendo suas longas asas de morcego.
O frango-zumbi assentiu com um cacarejo. Percebi que não tinha saída. Ia virar um frango-zumbi também. Uns minutos a mais e estaria babando pelo bico feito essa monstruosidade na minha frente. Decidi-me.
- Não vou me entregar à vocês. - Disse, isso olhando fixamente para eles.
A pipoca pareceu não entender, muito menos o frango-zumbi babão. O som do rádio da vizinha ainda tocava, a voz do Sr.Ernesto ainda aparecia em minha mente. Dei as costas para todos eles, e atirei-me da sacada.
Lembro do olhar de frustração da Pipoca enquanto caía. O frango não parava de cacarejar. As penas em meu corpo aumentavam, minhas pernas já eram de um galináceo. Olhei para baixo, e vi o chão se aproximar de mim. Não quis saber de mais nada. Apenas fechei os olhos esperando o estrondo que faria no chão. E bati.
No impacto, abri os olhos num pulo, e enxerguei o chão da sala. Meu coração estava acelerado. A TV estava ligada, ainda passando o documentário. Olhei para trás e vi o relógio: quatro e dez. A vizinha de baixo ainda estava com o som no máximo. Minha pipoca estava toda caída no pé do sofá. Suspirei aliviada. Foi tudo um sonho. Levantei-me dolorida, devo ter caído de mal jeito. A campainha não demorou a tocar. Quem seria?
- Está tudo bem? Ouvi um barulho.
Era minha vizinha. Deve ter se assustado quando caí do sofá.
- Está tudo certo, sim. Só cai.
- Okay, então. Fiquei preocupada, a senhorita nunca faz barulho algum, e agora dá esse estrondo.
Agradeci a preocupação e ela se foi. Uma pena que não posso dizer que ela também não faça barulho. Voltei para a sala, varrendo a pipoca que esparramei no chão. Mais uma leva de pipoca para o lixo. As chamuscadas, desta vez, ainda estavam lá. Fiquei satisfeita com isso. Meu estômago ainda roncava, comi quase nada da pipoca, e ela foi toda para o chão. Será que estouro outra ou como uma maçã? Sr.Ernesto ainda estava dando entrevista, dessa vez mostrando suas galinhas poedeiras. Enquanto pensava, uma delas virou para a câmera e cacarejou. Não sei porque, mas decidi ficar com a maçã.
~ VK ~
Até a parte dos frangos-zumbis eu tava levando a sério haha
ResponderExcluirFantástico, Vívian. Altas risdas aqui. Um ótimo conto, continue escrevendo, estou curtindo essa sua inspiração. ;)
ResponderExcluirgenial! parabéns! ;))
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