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Canto nas águas

O relógio marcava três e quarenta e cinco. Fiquei de plantão essa noite com uma colega resolvendo uns trabalhos enquanto monitorávamos o oceano com nosso robô-subaquático, o Teuthida-SQD350 (Squid, para os íntimos). Estar sozinhas num barco no meio do mar é um tanto assustador, não há iluminação alguma, luz só tem do barco e das estrelas, para onde você olha é um enorme breu. O silêncio pode dar ao ambiente tranquilidade, mas para quem está aqui, chega a ser suspeito. Dizem até que passar tempo demais no meio do oceano pode enlouquecer um homem. Retornaríamos à costa às cinco, trocando de turno com outra dupla.
 
A noite estava calma, perfeita para a pesquisa. Minha amiga dormia enquanto eu terminava de coletar as informações enviada pelo Squid. Ao contrário da superfície, no fundo eu detectava alguns sinais de vida. De vez em quando, criaturinhas abissais cruzavam a câmera do robô, exibindo suas formas bizarras. Alguns pontos de luz emitidos por uns crustáceos apareciam na tela. Era gostoso observá-los, e assim fiquei por um tempo, olhando-os nadar com seus jeitos desengonçados, e vendo aquelas luzinhas piscando, piscando, piscando, piscan...TUM! Alguma coisa se chocou contra o robô.

- Clara, acorda!
 
Minha amiga apenas resmungou e virou para o outro lado. Devia estar cansada, trabalhou direto desde manhã.
 
- Clara!
 
Nada.
 
Um harmonioso, porém profundo, sibilo foi detectado pelo robô. Seria uma baleia? Nunca filmamos uma baleia nas profundezas, seria um marco se eu conseguisse alguma imagem. O som não parecia estar longe, pelo contrário, deveria estar próximo, e as informações coletadas por Squid confirmavam: havia uma agitação diferente na água.
 
"Cade você? Será uma cachalote?"
 
Pela câmera do robô, procurei ao redor a criatura que emitia aquele som. Mas não encontrava nada, apenas aquele breu no fundo do mar. Até mesmo os peixes que estavam ali sumiram. O sibilo se repetia, acelerando meu coração, fazendo-me querer encontrá-lo. Vasculhei a área por uns vinte minutos, mas nada encontrei, apenas rochas e areia.
 
"Estou ficando louca?"
 
Queria desistir, até porque não era bom gastar a bateria do farolete externo (infelizmente nossa engenhoca tinha suas limitações). Porém, alguma coisa me impulsionava a encontrar, seja lá o que for. Não só queria, PRECISAVA.
 
O sibilo ressurgiu, dessa vez mais alto. Ouvi-lo aumentou mais ainda a motivação de procurar. Sabia que estava por ali, mas onde? Não estava longe, tenho certeza. O som era alto, mas delicado, lembrava-me vagamente a melodia de uma ave canora fusionada com um sonar. Sabia que era arriscado gastar a energia com a luz, mas estava determinada a achar. Queria saciar a curiosidade à qualquer custo.
 
Quatro e quarenta, e nada ainda. O farolete já estava fraco, e a câmera começava a apresentar interferências. Mais um pouco e teríamos que voltar para costa. Era frustante saber que não conseguiria registrar a fonte daquele som. Vi que precisava trazer o Squid de volta, ou não teríamos bateria para seu retorno. Já estava cansada, e meu relatório nem estava terminado. Fiquei tempo demais procurando a criatura. Engoli meu orgulho e ordenei que Squid voltasse a superfície.
 
- Trabalhando ainda?
 
- Ah, bom dia, Clara.
 
- Desculpa, acabei deixando você fazer todo o serviço.
 
- Sem problemas, você já fez bastante no turno da manhã.
 
- Deu tudo certo?
 
- É, acho que deu.
 
- Que bom. Vou lá em cima, já já o sol nasce, e não quero perder essa visão. Daqui do mar ele é lindo.
 
E subiu. Assim como Squid. O robô subia vagarosamente. O farolete estava apagado, pouco dava pra enxergar com a visão-noturna da câmera, que também estava começando a falhar. Comecei a arrumar as coisas, preparando-me para retornar à costa, quando algo chamou-me a atenção: olhei para o monitor de relance, e do fundo das águas, vi vagamente duas orbes douradas fitando para a câmera, segundos antes dela desligar. Fiquei um tempo travada, tentando processar o que eram aqueles olhos tão profundos. Não foi uma ilusão, tenho certeza.
 
- Jessy, corre aqui! O Sol está nascendo!
 
Estava pasma, aquilo foi real! Larguei a papelada que arrumava e fui até minha amiga, ainda tentando entender o que tinha acabado de ver. Enquanto subia as escadas, tive certeza que escutei de novo o sibilo doce das profundezas, mas muito mais intenso. Corri para fora atônita, na esperança de encontrar da onde vinha o som.
 
- Jessy, você está bem?
 
Dei a volta pelo barco olhando fixamente para aquela imensidão azul. Estava por ali, tenho certeza, seja o que for, ainda está aqui! O som se repetiu, e vinha na direção da proa. Corri, me debruçando na ponta do barco. No impulso de me apoiar, me desequilibrei. Ao cair no mar, tive a sensação de ter acordado de um sonho, mas já era tarde. Não precisava mais encontrar nada, pois aqueles grandes olhos dourados encontraram a mim.
 
E num último suspiro, ouvi a criatura sibilar mais uma vez.

Imagem: Christy Tortland (http://christytortland.deviantart.com/?rnrd=119204)



~ VK ~

Comentários

  1. Muito bom, se colocasse mais suspense poderia ser confudido com os contos do Edgar Alan Poe. Pena que esta curtinho mas esta bem envolvente. by:Kold Shadow

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  2. Bem bacana, Vívian. Achei um micro conto envolvente, um bom suspense. O enredo poderia ser mais desenvolvido, mas acho que sua intenção foi fazer algo pequeno e para esse propósito ficou bem feito. Como sou estranha, para mim a "mina" morreu. huahauhauhuahuahau... ;)

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