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O Pianista ~


Esse conto fez parte de um "desafio literário", no qual eu precisava criar uma história que contivesse as palavras Piano, Sorvete, Terremoto e Dragão como elementos significativos.

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O PIANISTA

Se tem algo que me deixa com a maior preguiça é o calor, pelo menos quando fico trabalhando em casa (se fosse para passear, não veria problema). Meu apartamento não é dos maiores, muito menos dos mais frescos. O sol bate na sala de manhã, e a tarde fica ali esquentando meu quarto. Se não fosse pelo meu ventilador e potes - e mais potes - de sorvete, já teria derretido  fazia tempo. Em dias como esse, minha gata, Sonata, fica esticada no azulejo frio da cozinha, subindo no sofá apenas ao final da tarde.

Nossos dias de verão têm sido assim desde que nos mudamos para cá, há aproximadamente dois anos. Sonata apareceu para mim como uma bichana toda estrupiada na rua, com seus pelos amarelos e brancos bem judiados e falhados. Hoje, fica enroscada em algum canto da casa dormindo enquanto produzo meus textos, pulando sobre minha mesa e meu teclado de vez em quando, nos momentos que exige minha total atenção.

Levamos uma vida bem tranquila, inclusive em relação à vizinhança: nosso novo vizinho do andar veio para nosso prédio há oito meses. De primeira, achei que poderia ser um problema, pois o Sr. Tarcísio é um pianista. Costuma tocar em seu piano toda noite, mas sua melodia é tão bonita e harmoniosa que não tem como reclamar. Pelo contrário, geralmente é ao som de suas músicas que produzo meus melhores trabalhos. Sonata a aprecia também; sempre que inicia as primeiras notas, a gata já está ali, deitada ao pé da porta de entrada, apreciando o som do apartamento ao lado enquanto tira uma soneca.

Sr. Tarcísio é um viúvo de 72 anos, costumava tocar em festas da alta sociedade e dava aula de música durante a semana. Viajava todo final de ano para outros países com a Sra. Giovana, que era uma grande violinista. Porém, quando perdeu sua esposa, abandonou todo seu trabalho e se isolou dentro do apartamento, tendo como refúgio apenas seu piano. Seu único filho, Homero, partiu para a Alemanha logo depois da faculdade e nunca mais retornou, enviando apenas e-mails periodicamente.

Dificilmente o encontrava no corredor. Quando saía, era apenas para fazer compras para casa. Tive a oportunidade de falar com ele poucas vezes. Apesar de ter perdido o gosto pela vida e carregar um olhar pesaroso e sem brilho algum, continuava sendo um senhor bem simpático e gentil. Contou-me um pouco dessa sua história, e até deu-me uma pequena estátua de dragão, muito bem detalhada e coberta com alguns cristais, que comprara numa viagem à China, e que encontra-se sobre uma das mesinhas de canto da sala.

Eu gostava muito do Sr. Tarcísio, e sentia uma certa compaixão pela sua situação. Entretanto, eu sabia que, quando estava dentro de casa, não queria ser incomodado, então nunca ousei tocar sua campainha para nada. Logo, ficava apenas apreciando de longe quando tocava seu piano, e curiosamente, por último, sempre tocava a mesma música, uma que me disse em certa ocasião que era a preferida de sua esposa, no qual tocavam em dueto. Agora, tocava sozinho, sem o som do violino para lhe acompanhar. O som ecoava como um lamento, cada nota parecia uma prece, o que dava uma certa angústia escutá-la, mas ao mesmo tempo belíssima. E Sonata concordava comigo, era a única melodia que fazia questão de ouvir desperta de seus cochilos.

***

Num sábado, o dia amanheceu mais fresco. Aproveitei para dar uma saída e comprar mais sorvete. Certeza que em breve o calor voltaria com tudo. Na volta, quando me aproximava do prédio, vi o Sr. Tarcísio saindo. Ele também me viu, e com um discreto aceno de cabeça cumprimentou-me. Seus olhos pareciam diferente, mais distantes do que de costume. Retribui com um aceno e um sorriso, e cada um seguiu seu caminho. Não nego que eu tinha uma certa pressa. Apesar de ser fim de semana, eu tinha um texto para entregar até domingo e mal tinha começado.

Quando cheguei no apartamento, fui recebida com um sucinto “miau”, e guardei os sorvetes no freezer. Passei a tarde no escritório escrevendo, parando apenas para dar uma alongada rápida e pegar café. Não fazia ideia de quando tempo estava ali, até que uma gata pula sobre meu teclado, miando por atenção.

- O que foi, Sonata?

Afagava carinhosamente seu dorso, quando olhei para o relógio e vi que eram quase 21h.

- Nossa! Sua comida! Nem vi o tempo passar, me desculpe!

Fazia mais de 8h que eu estava trabalhando, mas meu texto não tinha saído da primeira página. Passei mais tempo preparando um rascunho e fazendo pesquisas de informações para incluir nele do que escrevendo de fato.

Em passos apressados, fui andando até a cozinha. Passando pela sala, sinto um leve tremor no ambiente. Sonata passa correndo do escritório até debaixo do sofá, e vejo que o lustre deu uma balançada. Ao final, um baque seco é escutado vindo da mesinha de canto. O tremor passou rápido, durou segundos. Corri até a janela para ver se alguém lá de fora comentava algo, mas nada. Enxergava as pessoas na rua andando como se nada tivesse acontecido, e o porteiro estava sentado próximo a portaria com seu cigarro, como fazia toda noite, não parecendo abalado com nada. Discretamente, olhei para a sala de um apartamento do prédio da frente, e as pessoas ali sentadas no sofá agiam como se não tivessem sentido nada.

“Estranho, será que foi só aqui?”

Afastando-me da janela, olhei para a mesinha de centro de onde ouvi um barulho, e vejo que a estátua de dragão que ganhei do Sr. Tarcísio tinha tombado, fazendo um trinco bem no meio.

“Pensando nisso, não lembro de ter ouvido barulho no corredor. Devia estar concentrada demais trabalhando para ouvir ele chegando em casa.”

Recoloquei a estátua de pé, e voltei para a cozinha para colocar a ração da Sonata. Esta, saíra debaixo do sofá e estava sentada no meio da sala, olhando para mim com olhos confusos.

- Nosso vizinho não está tocando hoje, não é? Será que não voltou?

A gata apenas me devolveu um miado. Não faço ideia se entende algo que eu digo. Talvez esteja mais interessada em seu jantar.

Após alimentar a gatinha, voltei ao escritório para concluir meu texto. Foi difícil conseguir escrever alguma coisa, estava tão habituada a trabalhar ouvindo o piano do Sr. Tarcísio que escrever no silêncio foi algo fora da rotina. Levei umas 3h para terminar, e assim que o fiz, desliguei o notebook e me joguei na cama. Estava com a mente cansada, ao mesmo tempo preocupada. Meu vizinho não era de passar a noite fora, e não ouvi-lo tocar deixou-me com uma sensação horrível por dentro. Ouvi Sonata entrar no quarto e subir na cama, acomodando-se perto de minhas pernas. Não demorou muito para nós duas nos entregarmos a um mundo de sonhos.

***

Na manhã seguinte, acordei um pouco mais tarde que o habitual. Sonata já tinha levantado e saído do quarto.

“Não posso esquecer de enviar o trabalho hoje.”

Levantei-me da cama e fui logo lavar o rosto e me trocar. Já era quase a hora do almoço, era mais fácil sair e comer fora do que preparar um café da manhã sendo quase meio-dia.

- Miau!

- Sim, não vou esquecer de te dar ração antes de sair.

Coitada, nunca come no horário habitual de domingo. Espero que ela me perdoe por esses atrasos de finais de semana.

Ao sair do apartamento, vejo uma pequena movimentação no corredor. O zelador, o Sr. Vicente, conversava com uma vizinha, Marcia, que estava com uma expressão preocupada, ao mesmo tempo que olhavam para a porta do Sr. Tarcísio.

- Tudo bem, Sr. Vicente? - perguntei.

- Bom dia, Violeta! Ah até que sim, pena não poder dizer o mesmo para o seu vizinho.

- Sr. Tarcísio?

- Não ficou sabendo? - perguntou-me Marcia – Ele saiu ontem sabe Deus pra que, e foi atropelado a noite lá na avenida.

- Ele nunca foi de ficar fora até tão tarde da noite – completou o Sr. Vicente – era quase umas 21h quando isso aconteceu. O problema agora é conseguir falar com algum familiar para ver o que fazer com o apartamento.

- Uma pena...gostava tanto da música dele – continuou minha vizinha.

Aproveitei que Marcia puxava mais assunto com o zelador para sair dali. Caminhei até a padaria pensando nisso tudo. Senti pena do Sr. Tarcísio, morrer atropelado, assim, de repente!

“Ou talvez não foi tão ‘de repente’....”

Não consegui comer muito naquela manhã. Ao retornar ao apartamento, encontrei Sonata deitada perto da mesinha de canto. Olhou-me entrar e voltou ao seu sono da tarde. Passei o dia digerindo aquelas informações. Como assim nunca mais ouviria o Sr. Tarcísio tocar? O último olhar que me deu naquela manhã de sábado não saía de minha cabeça. Será que ele sabia que não voltaria? Não consigo imaginar o que se passava em sua cabeça.

***

Quando o outono chegou, o apartamento de meu ex-vizinho continuava vazio. Seu filho voltara da Alemanha ao ficar sabendo da morte do pai e, sabendo que herdara aquele imóvel, logo o esvaziou e o colocou a venda. Nada ficou ali, se desfez de tudo para então poder voltar à Europa. Inclusive o piano acabou vendendo para a escola de música em que o Sr. Tarcísio dava aula. Ele não parecia muito abalado com a perda do pai, parecia mais é incomodado por ter voltado ao Brasil para resolver esse perrengue, tanto que, como o apartamento não vendia logo, deixou essa parte nas mãos de um tio próximo, irmão de seu pai, que morava em outra cidade, para poder retornar à Alemanha.

Nas primeiras noites após o acidente, Sonata dormia sobre o braço do sofá. De vez em quando, olhava em direção a porta, ficando na sua frente, como se esperasse ouvir alguma música. Ficava assim uns minutos, até que cansava e saía. Como nunca ouvia nada, desistiu de monitorar e passou a descansar em outros lugares que não fosse ali. Parecia até que tinha esquecido daquilo tudo, inclusive de nosso vizinho. Pelo menos era o que aparentava. Foi bem difícil para mim me habituar àquela nova situação. Escrevia meus textos sempre na esperança de ouvir o som do piano, mas nunca ouvia nada. Cheguei a colocar músicas para tocar, mas não eram iguais. Aquela melodia era única, cheia de emoções e histórias, e não havia mp3 algum que reproduzisse aqueles sentimentos implantados em cada tecla.

Apesar de ser outono, a noite estava quente. Não havia sorvete para me refrescar, muito menos ânimo para levantar e ir buscar. Fiquei ali, jogada no sofá, pensando naquele sábado de verão. Não estava fresco como daquela vez, mas o calor parecia até reconfortante. Fechei os olhos, pensando no que poderia ter acontecido.

- Miau...

- Já vai, Sonata...

A gata também miara naquela noite, provavelmente agora também me pedia sua janta. Abri preguiçosamente um dos olhos em direção ao relógio. 21h. Como naquele sábado. Voltei a fechar os olhos, com um dos braços sobre eles, protegendo da luz direta da lâmpada. Sentia-me sonolenta, ficar ali deitada pensando estava me deixando com sono.

- Miau...

- Um minuto...

Minha voz saía como um grunhido. Estava quase adormecendo. Em minha cabeça, uma mistureba de pensamentos passavam incessantemente. O miado de Sonata ecoava mais distante, creio que estava dormindo mesmo. Num momento, penso ter sentindo um leve tremor de novo. Não sei se ficar pensando no Sr. Tarcísio fez meu corpo recobrar dessa lembrança. Acima de mim, na mesa de canto, ouço novamente o baque da estátua tombando. Sonata para de miar. Deve ter corrido para algum canto da casa, como naquela vez. Um silêncio profundo invadiu meu apartamento. Nem tremor, nem gato miando nem mais nada caindo. O silêncio parece ter tomado todo o ambiente. Entretanto, gradualmente, parece que escuto uma melodia se aproximar. Bem baixinho de início, aumentando a cada nota. Meus ouvidos reconhecem aquela música, aquela que ouvi por oito meses em minhas noites.

Não.

Não é a mesma.

Concentrando um pouco mais ao som, percebo a mesma harmonia, as mesmas notas, mas com certeza menos melancólico como de costume: ao fundo, escuto claramente o som de um violino acompanhando o pianista, formando um dueto que jamais ouvi naqueles tempos.

 “Estou sonhando?”

O som dos dois instrumentos se juntavam num acorde perfeito, como se fosse impossível tocar separados. Não sei se isso tudo é um sonho, um desejo de ver Sr. Tarcísio vivo de novo. Mas mesmo sonolenta, ao manter os olhos entreabertos por poucos segundos, tenho certeza de ter visto Sonata deitada ao pé da porta.

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