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Jack

Aqui pela região há um parque maravilhoso para passar o tempo. Geralmente é bem tranquilo, mas de tempo em tempo, durante dois dias, ele fica lotado! Ouvi dizer que esses dias se chamam "fim de semana", não sei ao certo, só que é quando tudo fica mais agitado por essas áreas.

Ontem foi um dia desses. Logo cedo já estava por lá explorando o ambiente, rolando no gramado ainda úmido da madrugada, enquanto curtia os primeiros raios de sol baterem em minha barriga. O parque não tardava a encher. Os primeiros eram sempre pessoas de roupas curtas que gostavam de ficar correndo em volta do lugar. Alguns, traziam seus cachorros, todos com seus pelos brilhantes e físico esbelto. De vez em quando tentava acompanhá-los, mas não aguentava mais do que alguns metros. As pessoas pareciam satisfeitas com isso. 

Os segundos a chegarem eram famílias e amigos. Andavam em grupo, seja à pé, de bicicleta, skate, patins, ou apenas estendiam uma toalha em algum ponto do gramado e ficavam a tarde toda ali, comendo e conversando. Dificilmente conseguia ficar perto. Quando me aproximava, sentia os olhos curiosos. Na maioria das vezes me expulsavam dali, nas outras, apenas me ignoravam. Já estava acostumado com isso.

Gostava de andar sem rumo pelo parque. Havia um lago no fundo, onde eu bebia água. Por lá, sempre haviam casais sentados na beirada, crianças olhando os peixes e alguns jovens tirando foto. Algumas dessas crianças se aproximavam de mim com os olhos brilhando, falando "Que bonitinho!", mas logo seus pais se aproximavam e mandavam "não por a mão nesses vira-latas". 

Apesar disso, gostava das crianças. Não pareciam se importar que eu não carregava uma coleira bonita no pescoço, nem que meu pelo não era tão sedoso como dos outros cães que frequentavam o parque junto com seus donos. Sempre abanava o rabo pra elas. Algumas até brincavam comigo com um graveto ou uma garrafa vazia. Adorava buscar quando jogavam! Só não entendia por que que às vezes jogavam e, enquanto eu ia buscar, sumiam. Já tentei ir atrás, mostrando que tinha buscado, mas corriam mais rápido, e seus pais chegavam me enxotando. Outras só me olhavam e, escondida dos adultos, me jogavam algo para comer. Uma delas "acidentalmente" deixou cair um negócio gelado e doce, super gostoso. Arrepiava lamber aquela coisa cremosa, mas apesar de frio, era muito bom. No calor eram o que elas mais comiam. Viviam com as bocas lambuzadas.

Naquela tarde, quando o sol estava bem no topo do céu, o calor ficou insuportável. Sentia o chão queimar, então corri para uma parte arborizada. Parece que todo mundo teve a mesma ideia. Foi difícil achar um ponto vazio para me esticar sem ninguém se incomodar com minha presença, mas achei. Dei uma longa espreguiçada antes de deitar. Não era um lugar ruim. Podia ver de longe as pessoas conversando, cães latindo, barulho das embalagens de salgadinho sendo abertas, algumas pombas sobrevoando o terreno, e o grasnar dos patos. Um dia eu estaria ali entre eles, curtindo o dia juntos, carregando uma elegante coleira no pescoço, me divertindo enquanto coçam minha barriga. 

Sentia as pálpebras fecharem vagarosamente enquanto minha mente divagava aquelas cenas em família. No minuto seguinte, estava em outro ponto da cidade. Não conhecia aquele lugar, mas não estava me sentindo deslocado, parecia familiar. Tudo estava calmo, quase não tinha carros ou pessoas. Farejei o ar, mas não senti nenhum cheiro diferente do que estava acostumado. Andei um pouco por aquele lugar, olhando ao redor, tentando saber onde fui parar. Ao longe, vi uma garotinha olhando em minha direção. Tinha os cabelos encaracolados nas pontas, com um enorme laço vermelho os prendendo.  Parecia feliz, me fitava e sorria. 

- Venha, Jack!

Jack? Era comigo? Não sabia que tinha um nome. Relutei por um minuto, aquilo era novo para mim. Tentei farejá-la de longe, mas não captei nada.

- Vem, garoto! Está na hora!

Quando terminou de falar, a garota do laço vermelho se virou, avançando em direção à rua. Fui correndo em seu encontro. Abanava minha cauda enquanto seguia, mas parecia que não a alcançava. Não sabia quem era, mas sentia que devia ir. Queria saber quem era, e poderia ser a única vez de ter achado alguém que me queria. Continuei a correr, mas ela continuava distante. 

- Vem logo, Jack! Vamos para casa!

Comecei a ganir de desespero. Não consegui chegar na pequena. Via aquele laço vermelho se afastar, sumindo de minha vista. Ela continuava a me chamar, cada vez mais forte, mas por mais que corresse, não conseguia chegar nela.

- JACK!

Despertei num susto. Ainda estava no parque, e percebi que começara a chover. Vi as pessoas correndo, indo embora, ou procurando abrigo. Fiz o mesmo. Ainda estava confuso com aquele sonho. Aquela voz, parecia tão real! A chuva caia enquanto eu corria em direção à saída. Sentia meus pelos grudarem, mas ao menos refrescou. Quando atravessei o portão e estava cruzando a avenida, escutei uma voz feminina gritar:

- Vem logo, Jack!

Na hora parei para olhar para trás. Escutei barulho de pneu derrapando, e uma forte batida em meu corpo. O mundo pareceu girar. Quando dei por mim, estava jogado no meio da rua, à metros da onde estava. Levantei, me arrastando pelo asfalto querendo sair dali. Gania feito louco, apenas sentindo uma dor absurda no corpo. O cheiro de sangue era forte, mas não conseguia me focar em nada, só em sair de lá. Ouvi pessoas gritarem e vi de relance uma mulher pegando seu filho pela mão. “Seu pai já está no carro, Jack”, ela disse. 

Não sei quanto tempo passou, a chuva ainda caía, e me meti debaixo de um banco. Não conseguia mais correr, minhas pernas se arrastavam, e não sei porque estava ficando zonzo. Tentei me acalmar, mas quanto mais tentava, mais dor sentia. As pessoas passavam por mim correndo. Na pressa de não se molharem, nem notaram o rastro de sangue que estava sendo levado pelas águas. Se notavam, ignoravam. Era difícil não ganir de dor, e mal conseguia lamber o ferimento sem sentir uma pontada aguda.

Não sentia minhas pernas direito. Só conseguia ficar deitado. A tontura não melhorava, pelo contrário, parecia aumentar. O barulho da cidade ia sumindo, e meus olhos começaram a pesar. 

“O que está acontecendo comigo?”

O sangue ainda era marcante, e a dor aguda. Fechei os olhos para tentar me acalmar. A chuva caía, e as pessoas fugiam para suas casas. Podia ouvir ao longe os carros nas estradas, e o som de passos diminuindo. Uns minutos devem ter se passado, quando senti uma mão em minha cabeça. Lentamente abri os olhos, e vi aos poucos o sorriso da garotinha do laço vermelho. Abanei a cauda com dificuldade, enquanto a garotinha me afagava com suas mãos delicadas. 

- Agora tudo vai ficar bem, Jack.

A dor parecia estar amenizando, mas ainda não conseguia me mexer. Tive a impressão que a chuva foi parando, não sentia mais as gotas caírem sobre meu corpo. O som da cidade ia sumindo, e minha visão embaçando cada vez mais. Única coisa que sentia era a mão da garotinha me afagando. Não sei o que aconteceu depois, mas tive certeza que quando reabrisse os olhos, estaríamos em nossa casa.



~ VK ~

Comentários

  1. Sem palavras...
    Excelente texto, pude sentir toda a agonia do cão ao perseguir a garota, sua euforia e alívio ao reencontrá-la. Muito boa a forma com que conduziu a história, realmente impressionante!

    Parabéns! Valeu totalmente a espera. <33


    Ps. Por pouco não suei pelos olhos, por pouco...

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  2. Muito boa história e um final muito inteligente mediante a sua dúvida,
    parabéns.

    Ps: só cá entre nós , espero que Jack fique bem =p .

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